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Aquele verão de 80 (Mariana Ianelli)

Mariana Ianelli*

O verão de 80 vai começar de novo. As notícias estão chegando. Os Jogos Olímpicos em Moscou, o massacre de Bolonha, o reino da morte no Irã, a greve dos operários de Gdansk. Todas essas coisas acontecidas estão de novo acontecendo nas crônicas de Marguerite Duras para o jornal Libération. As mulheres e os homossexuais perseguidos pelo fascismo, o Afeganistão destruído, os mil tanques da Rússia na Alemanha oriental, na Tchecoslováquia, na Polônia. Tudo isso acontecendo enquanto, nos balneários de Trouville-Deauville, centenas de famílias esperam pelo sol.

O sol vem. Diante do porto de Antifer, os petroleiros grifam a linha do horizonte. Diante das câmeras, as crianças de Uganda encaram nos olhos quem vem para ver os anjos, esses anjos que Cortázar, uma vez, também viu num álbum de luxo que custava trinta francos. De novo, não há o que dizer, não há como fazer caber numa palavra o que se vê, é supérfluo ter uma opinião, tentar explicar por que existem essas crianças, esses anjos do terror em embrulhos perolados, vogando por terra em suas mínimas jangadas. Na verdade, na verdade é sempre o medo, o mesmo medo, a oriente e ocidente, as mesmas nuvens cinzentas sobre os muros do mundo, não importa quão altos e largos esses muros, são sempre as mesmas nuvens por cima desses muros, como diria um moçambicano, muitos verões depois daquele verão de 80, numa conferência sobre segurança mundial, é sempre o medo, o submundo da indústria do armamento e, nesse submundo, os que têm medo que esse medo um dia acabe.

Em Trouville-Deauville, tudo continua acontecendo. Um menino de olhos cinzentos acaba de voltar sozinho por um caminho de tábuas. De novo vem vindo o sol e só então as outras crianças chegam. Quando se vê, toda a colônia de férias está na praia. A monitora vai ao encontro do menino de olhos cinzentos e o levanta em seus ombros. Numa só figura, vão para o mar, o menino e a monitora. Ele tem seis anos de idade, ela dezoito. É a história de amor mais triste de um verão. A história de um amor que ninguém nem suspeita, um amor sem acontecimentos, entre um menino de uma colônia de férias e sua monitora. Tudo está lá, nas crônicas daquele verão de 80, nas páginas do Libération.

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* Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.

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